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De bicicleta pelo começo

Nasci em uma cidade de casas. Casas pequenas, simples, que se alternavam em cores e formas quando vistas pela janela do banco de trás do carro da minha mãe. Eram casas pequenas, que se tornavam quase imperceptíveis se estávamos atrasados. Os carros, no entanto, eram grandes. Ainda mais quando vistos da perspectiva de uma pequena passageira: painel, direção, câmbio, bancos, espelhos. Eram tão grandes que determinavam a hierarquia do poder entre eu e meus irmãos, por isso eram constantes as disputas para ver quem iria no banco da frente ou ainda, quem seria capaz de manipular a direção do carro desligado, quando brincávamos de motorista. Os carros, como em toda família de classe média daquela época, eram símbolo de ascensão econômica. Por isso foram todos comemorados, diante da nossa condição de sobreviventes à inflação, recessões, planos econômicos e crises. Do primeiro Fusca, da Parati histórica até o primeiro carro com direção hidráulica, lembro-me de ter sido muito feliz. Essa felicidade movida em motores à explosão.

Cresci numa cidade de prédios. Prédios grandes, às vezes suntuosos e geralmente altos. Altos a ponto de ultrapassarem a visão limitada da janela do ônibus. Altos que chegam às vezes a tampar o sol. Mas isso era assim quando cheguei por aqui, há mais ou menos dez anos.

Hoje moro em uma cidade de carros. Carros que se acumulam cada vez mais em vias estreitas. Carros que buzinam em uma orquestra agonizante a música da impaciência. Impaciência que não é só minha, mas de boa parte dos motoristas ao lado. Alguns suspiros, espreguiçadas, cigarros sorvidos, celulares consumidos e motos, milhares de motos, lançando um agudo, estridente, no meio da via, capaz de irritar o mais calmo dos seres humanos.

Quando cheguei por aqui me encantei com os prédios, como todo estrangeiro se encanta com a paisagem alheia. Mas me desencantei, em proporções de um divórcio, quando o trânsito efetivamente começou a tornar os minutos do meu relógio mais curtos. Foi assim que eu comecei a odiar São Paulo.

Mas não me divorciei e na vida real também não casei. Como toda história óbvia, acabei comprando uma bicicleta: desmontável e absolutamente linda.

Começamos em trajetos tímidos, pelas vias sossegadas do bairro, que restavam aos finais de semana. Aos poucos a bike ganhou luzinhas, revestimentos para os pneus e amigos. Amigos outros que fizeram os trajetos curtos se tornarem mais longos e mais bonitos.

Um dia, depois do que já nos conhecíamos e que já havia lhe apresentado minha paixão em duas rodas, ele surgiu com um cabelo e uma barba enormes e uma speedy velha, quase enferrujada, que havia trazido do sítio do avô. Uma Caloi 10 pela qual ele se orgulhou muito e se tornou minha maior e mais apreciável parceria. Depois da amizade e da Caloi veio a máquina fotográfica e depois a minha vontade de escrever e tudo isso virou esse blog, de bicicleta.

De bicicleta vamos entendendo mais sobre as nossas distâncias. As nossas e as do mundo. Eu sigo escrevendo e o Renê segue fotografando. Com nossas duas magrelas e outras que se juntam a nós, nos permitimos experimentar São Paulo com outros cheiros, outras cores e outros sons. Colocamos a nossa irritação habitual do trânsito nos pedais e estamos por aí, registrando tudo.

Hoje vivemos numa cidade de bicicleta. Esse blog é sobre isso.